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Discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona



Discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona
Ratisbona (Regensburg, Alemanha), 12 de setembro de 2006)

Segue abaixo a íntegra do discurso que o Papa Bento XVI proferiu em 12 de setembro de 2006, na “Aula Magna” da Universidade de Regensburg (Ratisbona, Alemanha), que suscitou muitas críticas por ele ter citado uma frase do diálogo imaginário entre o Imperador Bizantino Manuel II Palaeologus e um erudito muçulmano persa.
 "Mostra-me também o que Maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas, como a sua ordem de difundir através da espada a fé que ele pregava".

Dizem que as críticas foram tão generalizadas, fortes, contundentes e duradouras, que teriam se tornado um dos fatores que levaram o Sumo Pontífice a renunciar a seu Pontificado em 11 de fevereiro de 2013.

“Aula Magna”: Fé, Razão, Universalidade e Reflexão.

Eminências, Magnificências, Excelências, Ilustres Senhores, Gentis Senhoras, é para mim um momento emocionante encontrar-me de novo nesta universidade e poder mais uma vez pronunciar-me por meio desta “Aula Magna”. Meus pensamentos, contemporaneamente, voltam àqueles anos em que, depois de um grande período passado no Instituto Superior de Freising, comecei minha atividade de professor académico na universidade de Bonn. Era em 1959, ainda o tempo da velha universidade dos professores tradicionais. Para cada uma das cátedras não existiam nem assistentes e nem datilógrafos, mas em compensação havia um contato muito direto com os estudantes e sobretudo entre os professores. Encontrávamo-nos antes e depois das aulas nas salas dos professores. 


Os contatos com os historiadores, filósofos, filólogos e naturalmente também entre os integrantes das duas faculdades teológicas eram muito próximos. Uma vez por semestre fazia-se o chamado “dies academicus”, no qual professores de todas as faculdades se apresentavam diante dos estudantes de toda a universidade, tornando assim possível uma experiência de universitas uma coisa à qual também o Senhor, Magnífico Reitor, se referiu há pouco, isto é, a experiência, o fato de que nós, não obstante todas as especializações, que por vezes nos tornam incapazes de comunicar-nos entre nós, formamos um todo e trabalhamos no todo, da única razão com as suas várias dimensões, estando assim juntos também na responsabilidade comum pelo reto uso da razão este fato torna-se experiência viva.

Sem dúvida, a universidade era orgulhosa também das suas duas faculdades teológicas. Era claro que também elas, interrogando-se sobre a racionalidade da fé, desempenham uma obra que necessariamente faz parte do "todo" da universitas scientiarum, mesmo se nem todos podiam partilhar a fé, para cuja correlação com a razão comum se comprometem os teólogos. Esta unidade interior no universo da razão não foi perturbada nem sequer quando certa vez filtrou a notícia de que um dos colegas dissera que na nossa universidade havia algo de anormal: duas faculdades que se ocupavam de uma coisa que não existia, de Deus. Que mesmo perante um cepticismo tão radical seja necessário e normal interrogar-se sobre Deus através da razão e isto deva ser feito no contexto da tradição da fé cristã: no conjunto da universidade, isto era uma convicção fora de questão.

 Tudo me voltou à mente, quando li a parte publicada pelo professor Theodore Khoury (Münster) do diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Palaelogus, talvez durante os meses do inverno de 1391, em Ankara, teve com um persa culto sobre cristianismo e islã e sobre a verdade de ambos. Talvez tenha sido depois o próprio imperador quem escreveu este diálogo, durante o assédio de Constantinopla, entre 1394 e 1402; explica-se assim por que os seus raciocínios sejam referidos de odo muito mais pormenorizado do que os do seu interlocutor persa.


O diálogo alarga-se sobre todo o âmbito das estruturas da fé contidas na Bíblia e no Corão e detém-se sobretudo sobre a imagem de Deus e do homem, mas necessariamente também sempre de novo sobre a relação entre as, como se dizia, três "Leis" ou três "ordens de vida": Antigo Testamento, Novo Testamento e o Corão. Não desejo falar disto nesta aula; gostaria de tratar só um assunto bastante marginal na estrutura de todo o diálogo que, no contexto do tema "fé e razão", me fascinou e me servirá como ponto de partida para as minhas reflexões sobre este tema.

 No sétimo colóquio (controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador enfrenta o tema da Jihad, da guerra santa. Certamente o imperador sabia que na sura 2:256 lê-se: "Nenhuma coação nas coisas de fé". É uma das suras do período inicial, dizem os peritos, quando o próprio Maomé ainda não tinha poder e estava sob ameaça. Mas, naturalmente, o imperador conhecia também as disposições, desenvolvidas sucessivamente e fixadas no Corão, sobre a guerra santa.
    
Sem se deter em pormenores, como a diferença de tratamento entre os que possuem “O Livro" e os "descrentes" ele, de modo tão brusco que nos surpreende, dirige-se ao seu interlocutor, simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo:

 "Mostra-me também o que Maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas, como a sua ordem de difundir através da espada a fé que ele pregava".

O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão duro, explica minuciosamente as razões pelas quais a difusão da fé mediante a violência não é racional. A violência está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele:

"Deus não se apraz com o sangue e não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo.  Por conseguinte, quem quiser levar alguém à fé precisa da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente, e não da violência e da ameaça. Para convencer uma alma racional não é necessário dispor nem do próprio braço, nem de instrumentos para ferir nem de qualquer outro meio com o qual se possa ameaçar de morte uma pessoa...".
     
A afirmação decisiva nesta argumentação contra a conversão mediante a violência é: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, comenta: para o imperador, sendo um bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é evidente. Para a doutrina muçulmana, ao contrário, Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está relacionada com nenhuma das nossas categorias, mesmo que fosse a da racionalidade. Neste contexto Khoury cita uma obra do conhecido muçulmano francês R. Arnaldez, o qual ressalta que Ibn Hazm chega a declarar que Deus não estaria relacionado nem sequer com a sua própria palavra e que nada o obrigaria a revelar a nós a verdade. Se fosse a vontade Dele, o homem deveria praticar também a idolatria.

A este ponto abre-se, na compreensão de Deus e, por conseguinte na realização concreta da religião, um dilema que hoje nos desafia de maneira muito direta. A convicção de que agir contra a razão esteja em contradição com a natureza de Deus, é apenas um pensamento grego ou é sempre válido e por si mesmo? Penso que neste ponto se manifeste a profunda concordância entre o que é grego no sentido melhor e o que é fé em Deus sobre o fundamento da Bíblia. Modificando o primeiro versículo do Livro do Génesis, o primeiro versículo de toda a Sagrada Escritura, João iniciou o prólogo do seu Evangelho com as palavras: "No princípio era o logos". É precisamente esta a mesma palavra que o imperador usa: Deus age com logos. Logos significa ao mesmo tempo razão e palavra uma razão que é criadora e capaz precisamente de se comunicar, mas como razão. Com isto João deu-nos a palavra conclusiva sobre o conceito bíblico de Deus, a palavra na qual todos os caminhos muitas vezes cansativos e sinuosos da fé bíblica alcançam a sua meta, encontram a sua síntese.

No princípio era o logos, e o logos é Deus, diz-nos o evangelista. O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era um simples acaso. A visão de São Paulo, diante da qual se tinham fechado os caminhos da Ásia e que, em sonho, viu um Macedônio e ouviu a sua súplica: "Vem para a Macedônia e ajuda-nos". Esta visão pode ser interpretada como uma "condensação" da necessidade intrínseca de uma aproximação entre fé bíblica e o interrogar-se grego.

Na realidade, esta aproximação já tinha sido iniciada desde há muito tempo. Já o nome misterioso de Deus na sarça ardente, que afasta este Deus do conjunto das divindades com numerosos nomes afirmando apenas o seu "Eu sou", o seu ser, é, em relação ao mito, uma contestação com a qual está em íntima analogia a tentativa de Sócrates de vencer e superar o próprio mito. O processo iniciado na “sarça” alcança, no Antigo Testamento, uma nova maturidade durante o exílio, onde o Deus de Israel, agora privado da Terra e do culto, se anuncia como o Deus do céu e da terra, apresentando-se com uma simples fórmula que prolonga a palavra da sarça: "Eu sou".

Com este novo conhecimento de Deus caminha em sintonia uma espécie de iluminismo, que se expressa de maneira drástica no escárnio das divindades que seriam apenas obra das mãos do homem. Assim, não obstante toda a dureza do desacordo com os soberanos helenistas, que queriam obter com a força a adaptação ao estilo de vida grego e ao seu culto idolátrico, a fé bíblica, durante a época helenista, ia interiormente ao encontro da parte melhor do pensamento grego, até chegar a um contato recíproco que depois se realizou especialmente na literatura sapiencial tardia.

Hoje nós sabemos que a tradução grega do Antigo Testamento, realizada em Alexandria a "Septuaginta" é mais que uma simples tradução (que talvez se deva avaliar de modo pouco positivo) do texto hebraico: de fato, é um testemunho textual distinto e um especifico e importante passo da história da Revelação, no qual se realizou este encontro de uma forma que para o nascimento do cristianismo e para a sua divulgação teve um significado decisivo. No fundo, trata-se do encontro entre fé e razão, entre autêntico iluminismo e religião. Partindo verdadeiramente da natureza íntima da fé cristã e, ao mesmo tempo, da natureza do pensamento grego já fundido com a fé, Manuel II podia dizer: não agir "com o logos" é contrário à natureza de Deus.

Honestamente é preciso anotar a este ponto que, no final da Idade Média, se desenvolveram na teologia tendências que rompem esta síntese entre espírito grego e espírito cristão. Em contraste com o chamado intelectualismo agostiniano e tomista iniciou com Duns Scott uma orientação voluntária, a qual no fim, nos desenvolvimentos sucessivos, levou à afirmação de que nós de Deus só conheceremos a voluntas ordinata. Para além dela existiria a liberdade de Deus, em virtude da qual Ele teria podido criar e fazer também o contrário de tudo o que efetivamente fez.

Aqui veem-se posições que, sem dúvida, se podem aproximar às de Ibn Hazm e poderiam conduzir até à imagem de um Deus-Arbítrio, que não está relacionado nem com a verdade nem com o bem. A transcendência e a diversidade de Deus são acentuadas de modo tão exagerado, que também a nossa razão, o nosso sentido do verdadeiro e do bem já não são um verdadeiro espelho de Deus, cujas possibilidades abismais permanecem para nós eternamente inalcançáveis e escondidas por detrás das suas decisões efetivas.

Em contraste com isto, a fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada exista uma verdadeira analogia, na qual como disse o Concílio Lateranense IV, em 1215, sem dúvida as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas, contudo, não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não é mais divino pelo fato de que o afastamos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e como logos agiu e age cheio de amor em nosso favor. Sem dúvida, o amor, como diz Paulo, "ultrapassa" o conhecimento e é por isto capaz de compreender mais do que o simples pensamento, contudo ele permanece o amor do Deus-Logos, para o qual o culto cristão é, como diz ainda Paulo, "adorar a Deus", um culto que concorda com o Verbo eterno e com a nossa razão.


A agora mencionada recíproca aproximação interior, que se teve entre a fé bíblica e o interrogar-se sobre o plano filosófico do pensamento grego, é um elemento de importância decisiva não só sob o ponto de vista da história das religiões, mas também sob o ponto de vista da história universal, um elemento que nos compromete também hoje. Considerado este encontro, não surpreende que o cristianismo, apesar da sua origem e de alguns seus desenvolvimentos importantes no Oriente, tenha por fim encontrado a sua marca historicamente decisiva na Europa. Podemos expressar isto também inversamente: este encontro, ao qual se acrescenta sucessivamente ainda o património de Roma, criou a Europa e permanece o fundamento do que, com razão, se pode chamar Europa.

À tese que o património grego, criticamente purificado, seja uma parte integrante da fé cristã, opõe-se o requerimento da “deselenização” do cristianismo um requerimento que desde o início da idade moderna domina de modo crescente a pesquisa teológica. Visto mais de perto, podem-se observar três ondas no programa da “deselenização”: apesar de estarem relacionadas entre si, elas nas suas motivações e nos seus objetivos são claramente distintas uma da outra.
    
 A “deselenização” emerge primeiro em ligação com os postulados da Reforma do século XVI. Considerando a tradição das escolas teológicas, os reformadores veem-se diante de uma sistematização da fé condicionada totalmente pela filosofia, isto é, perante uma determinação da fé a partir de fora em virtude de um modo de pensar que não derivava dela. Assim a fé já não se apresentava como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico.

A sola Scriptura ao contrário procura a forma pura primordial da fé, do modo como está presente originariamente na Palavra bíblica. A metafísica aparece como um pressuposto derivante de outra fonte, da qual é necessário libertar a fé para a fazer voltar a ser totalmente ela mesma. Com a sua afirmação de ter que pôr de lado o pensar para dar espaço à fé, Kant agiu com base neste programa com uma radicalidade imprevisível para os reformadores. Com isto ele ancorou a fé exclusivamente à razão prática, negando-lhe o total acesso à realidade.

 A teologia liberal dos séculos XIX e XX trouxe uma segunda onda no programa da deselenização: seu representante eminente é Adolf von Harnack. Durante o tempo dos meus estudos, como nos primeiros anos da minha atividade académica, este programa era fortemente operante também na teologia católica. Como ponto de partida era feita a distinção de Pascal entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. No meu discurso em Bonn, em 1959, procurei enfrentar este assunto e não pretendo retomar aqui todo o discurso. Mas gostaria de tentar ressaltar pelo menos em síntese a novidade que caracterizava esta segunda onda de “deselenização” em relação à primeira.

 Como pensamento central sobressai, em Harnack, o regresso simplesmente ao homem Jesus e à sua mensagem simples, que viria antes de todas as teologizações e, precisamente, também antes das helenizações: seria esta mensagem simples que constituiria o verdadeiro ápice do desenvolvimento religioso da humanidade. Jesus teria dado um adeus ao culto em favor da moral. Em conclusão, Ele é representado como pai de uma mensagem moral humanitária.  A finalidade de Harnack no fundo é reconduzir o cristianismo em harmonia com a razão moderna, libertando-o, precisamente, de elementos aparentemente filosóficos e teológicos, como por exemplo a fé na divindade de Cristo e na trindade de Deus.

Neste sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento, na sua visão, coloca novamente a teologia no cosmos da universidade: teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e, portanto, estritamente científico. O que ela indaga sobre Jesus mediante a crítica é, por assim dizer, expressão da razão prática e, por conseguinte também sustentável no conjunto da universidade. Na base encontra-se a autolimitação moderna da razão, expressa de maneira clássica nas "críticas" de Kant, que, entretanto, foi ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Este conceito moderno da razão baseia-se, em síntese, num resumo entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.

Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, a sua por assim dizer racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficiência concreta: este pressuposto básico e, por assim dizer, o elemento platónico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da utilizabilidade funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar verdade ou falsidade mediante a experiência fornece a certeza decisiva. O peso entre os dois polos pode, segundo as circunstâncias, estar mais de uma ou mais da outra parte. Um pensador tão estreitamente positivista como J. Monod declarou-se platónico convicto.

Isto exige duas orientações fundamentais decisivas para a nossa questão. Só o tipo de certezas derivantes da sinergia de matemática e empírica nos permite falar de cientificidade. O que pretende ser ciência deve confrontar-se com este critério. E assim também as ciências que se referem às coisas humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia procuravam aproximar-se deste cânone da cientificidade. Contudo, é importante para as nossas reflexões o fato de que o método como tal exclui o problema Deus, apresentando-o como um problema acientífico ou pré-científico. Portanto, com isto encontramo-nos diante de uma redução do leque de ciência e razão que é obrigatório pôr em questão.

Voltarei ainda a este assunto adiante. Neste momento é suficiente ter presente que, numa tentativa de conservar o carácter de disciplina "científica" da teologia à luz desta perspectiva, do cristianismo restaria apenas um miserável fragmento. Mas devemos dizer mais: se a ciência no seu conjunto é apenas isto, então é o próprio homem que, com isto, sofre uma redução. Mas as interrogações propriamente humanas, isto é, as do "de onde" e do "para onde", os questionamentos da religião e do ethos, não podem encontrar lugar no espaço da razão comum descrita pela "ciência" entendida deste modo e devem ser deslocados no âmbito do subjetivo. O sujeito decide, com base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a "consciência" subjetiva torna-se, portanto, a única exigência ética.

Mas, desta forma o “ethos”[costumes sociais] e a religião perdem a força de criar uma comunidade e terminam no âmbito da discricionalidade pessoal. Esta é uma condição perigosa para a humanidade: verificamos isto nas patologias ameaçadoras da religião e da razão patologias que necessariamente devem manifestar-se, quando a razão é limitada a tal ponto que as questões da religião e do ethos já não lhe dizem respeito. O que permanece das tentativas de construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente. 


Antes de chegar às conclusões que todo este raciocínio tem por finalidade, devo mencionar ainda em breve a terceira onda de “deselenização” que se difunde atualmente. Em consideração do encontro com a multiplicidade das culturas hoje há quem goste de dizer que a síntese com o “helenismo”, realizada na Igreja antiga, teria sido uma primeira inculturação, que não deveria vincular as outras culturas. Isto deveria ter o direito de retroceder até ao ponto que precedia aquela inculturação para descobrir a simples mensagem do Novo Testamento e inculturá-la depois novamente nos seus respectivos ambientes.  Esta tese não é simplesmente errada; contudo é grosseira e imprecisa. De fato, o Novo Testamento foi escrito em grego e tem em si o contato com o espírito grego um contato que se tinha maturado no desenvolvimento precedente do Antigo Testamento.

Sem dúvida existem elementos no processo formativo da Igreja antiga que não devem ser integrados em todas as culturas. Mas as decisões de fundo que, precisamente, se referem ao relacionamento da fé com a investigação da razão humana, estas decisões de fundo pertencem à própria fé e são os seus desenvolvimentos, conformes com a sua natureza.

Com isto chego à conclusão. Esta tentativa, feita apenas em linhas gerais, de crítica da razão moderna a partir do seu interior, não inclui absolutamente a opinião de que agora se deva voltar atrás, à época anterior ao iluminismo, rejeitando as convicções da era moderna. Aquilo que no desenvolvimento moderno do espírito é válido, é reconhecido sem hesitações: todos estamos gratos pelas grandiosas possibilidades que ele abriu ao homem e pelos progressos no campo humano que nos foram proporcionados. O “ethos” da cientificidade, afinal, é como Vossa Magnificência mencionou vontade de obediência à verdade e, por conseguinte, expressão de uma atitude que faz parte das decisões fundamentais do espírito cristão.

Por conseguinte, a intenção não é retração, nem crítica negativa; ao contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque com toda a alegria diante das possibilidades do homem, vemos também as ameaças que sobressaem destas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos dominá-las. Só o conseguiremos se razão e fé estiverem unidas de uma nova forma; se superarmos a limitação auto decretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão. Neste sentido, a teologia, não só como disciplina histórica e humano-científica, mas como verdadeira teologia, ou seja, como interrogação sobre a razão da fé, deve ter o seu lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências.

Só assim nos tornamos também capazes de um verdadeiro diálogo das culturas e das religiões um diálogo do qual temos urgente necessidade. No mundo ocidental domina amplamente a opinião de que só a razão positivista e as formas de filosofia dela derivantes sejam universais. Mas as culturas profundamente religiosas do mundo veem precisamente nesta exclusão do divino da universalidade da razão um ataque às suas convicções mais íntimas. Uma razão, que diante do divino é surda e rejeita a religião do âmbito das subculturas, é incapaz de se inserir no diálogo das culturas.

Contudo, a razão moderna típica das ciências naturais, com o seu elemento platônico intrínseco, tem em si, como procurei demonstrar, uma pergunta que a transcende juntamente com as suas possibilidades metódicas. Ela mesma deve simplesmente aceitar a estrutura racional da matéria e a correspondência entre o nosso espírito e as estruturas racionais atuantes na natureza como um dado de fato, sobre o qual se baseia o seu percurso metódico. Mas a pergunta acerca do porquê deste dado de fato existe e deve ser confiada pelas ciências naturais a outros níveis e modos do pensar à filosofia e à teologia.

Para a filosofia e, de maneira diferente, para a teologia, ouvir as grandes experiências e convicções das tradições religiosas da humanidade, especialmente a da fé crista, constitui uma fonte de conhecimento; recusar-se significaria uma limitação inaceitável do nosso ouvir e responder.

Vêm-me à mente a este ponto uma palavra de Sócrates a Fédon. Nos diálogos precedentes tinham sido tratadas muitas opiniões filosóficas erradas, e então Sócrates diz: "Seria muito compreensível se alguém, devido à irritação por tantas coisas erradas, para o resto da sua vida desprezasse e zombasse de qualquer discurso sobre o ser. Mas desta forma perderia a verdade do ser e sofreria uma grande perda".

 O ocidente, desde há muito tempo, está ameaçado por esta repulsa contra os questionamentos fundamentais da sua razão, e assim poderia sofrer unicamente um grande dano. A coragem de se abrir à vastidão da razão, não a rejeição da sua grandeza este é o programa com que uma teologia comprometida na reflexão sobre a fé bíblica, entra no debate do tempo presente. "Não agir segundo razão, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus", disse Manuel II, partindo da sua imagem cristã de Deus, ao interlocutor persa. Para este grande logos, para esta vastidão da razão, convidamos os nossos interlocutores no diálogo das culturas. Encontrá-la nós próprios sempre de novo, é a grande tarefa da universidade.
   

                                                                                  Bento XVI

Ratisbona (Regensburg, Alemanha), 12 de setembro de 2006)

                                                           -o-o-o-o-o-o-o-o-

NOTA:
As imagens foram acrescentadas para melhor referenciar a leitura.

Crédito especial deve ser dado à Associação Cultural Monfort, de onde extraí quase todo o texto, do qual retirei as citações no idioma grego e fiz a conversão para português brasileiro. http://www.montfort.org.br/bra/veritas/papa/papa_regensburg/

Também usei como referência alguns trechos da “Aula Magna” of the University of Herensburg, Germany, a quem também devo dar créditos.

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